terça-feira, 28 de setembro de 2010

O lar

Entro na sala de estar do rés do chão. É grande. Tem as paredes pintadas de bege. É um bege cor de mel do mesmo tom dos ladrilhos do chão. Do mesmo tom dos maples alinhados ao longo das paredes e também em filas perpendiculares a estas, acentuando a geometria do espaço. Cadeiras de rodas ocupadas por quem padece de alguma qualquer dificuldade de locomoção completam o cenário. Num dos cantos da sala, pregado junto ao tecto, um ecrã de TV difunde cores e movimento a que ninguém liga. O som, esse, está desligado. Na sala os sons são outros.
Avisto a Tia e desloco-me para junto dela. A seu lado, uma mulher de cabelo cortado curto vira para nós o seu olhar vazio. Vai desabotoando a camisa bege cor de mel que traz vestida. É da mesma cor das paredes, da mesma cor dos maples, da mesma cor do chão. Em breve soltará um dos braços da manga e deixará ver a camiseta que traz por baixo da blusa. Com um fio de baba a pender-lhe da boca, voltará a abotoar a camisa e novamente a desabotoá-la, num movimento contínuo que lhe ocupa o dia.
Ao lado da porta da sala, sentado numa cadeira, um homem barrigudo encosta a cabeça à parede. Olha para o tecto através dos seus óculos de grandes aros pretos. Desata a cantar. Ninguém o ouve. Nem a ele, nem à mulher que, sentada por baixo do ecrã de TV, cantou anteriormente numa voz fina e esganiçada.
Perto da Tia senta-se mais uma mulher. Lamenta-se e chora um choro fininho. Outras mulheres circulam pela sala. Saíram da ala dos quartos e agora passam pelos companheiros de tecto, carregando as suas malas de mão como se fossem a passeio à rua.
Na sala ao lado, tilintam os pratos e os talheres que as empregadas colocam nas mesas para o jantar. Pelas vidraças que dão para o pátio, vejo as árvores a dançar com o vento. Ao fundo uma nesga de mar faz ton-sur-ton com o céu. Há mais uma mulher que começa a cantar. "É a Bi-Deolinda", diz-me a Tia. Tem 96 anos. Não parece. Canta de olhos fechados um qualquer romance com personagens trágicas. Há mais uma cadeira de rodas que faz a sua entrada na sala. A mulher que se senta nela destoa de todas as outras. Parece arranjada para uma festa, com o cabelo armado por um vigoroso brushing. "Essa é uma senhora fina", explica novamente a Tia. "É mãe de uma doutora, dessas que tiram os meninos das barrigas das mães".
Ao fim de uma hora, dou por terminada a minha visita. Despeço-me da Tia. Dirijo-me para a porta lançando um boa tarde para todos. Olho mais uma vez para aquela mulher que levou o tempo todo a simular que se levantava da cadeira de rodas, apoiando-se nos punhos em esforço.
Cá fora recebe-me o ar ameno do fim de tarde. Subo a rampa em direcção ao carro, soprando repetidamente, como se o meu sopro conseguisse secar as lágrimas que deslizam no meu rosto.

Publicado também para a Fábrica de Letras

sábado, 25 de setembro de 2010

Da economia global e da sustentabilidade

...Do petróleo e do salmão e de como ainda me vou ver a cavar batatas...

A vida secreta dos objectos - O diabo mexicano



Mira….Acreditem se quiserem…mas sou certamente o diabo mais desejado do mundo. Pelo menos o mais desejado de Portugal. Bem, sem dúvida o mais desejado do Algarve. Enfim… de Faro… Bom, sou inegavelmente o mais desejado do serviço do A.

E digam lá se não sou o máximo… com estes meus dentes rangedores e os meus membros articulados que me facilitam o movimento….

O que é que faço por cá? Olhem, pois agora observo os dias atarefados deste escritório e os doidos que por cá trabalham. No dia em que cheguei foi um autêntico reboliço! O A. sentou-me em cima do armário do seu gabinete. Mas logo o J. fez um chinfrim dos diabos para me levar para a sala dele e da P. e da I. Só vos digo… foi uma guerra! Todos queriam que eu ficasse por perto! É que já esperavam por mim havia mais de um ano. Primeiro viram-me nas fotografias das férias do A. que, vá-se lá saber porquê não me comprou de imediato. Choraram lágrimas de crocodilo e atazanaram o A. meses a fio por não me ter trazido logo com ele. Por isso continuei no meu país, de mercado em mercado, com os meus familiares a ver passar turistas. Muitos dos meus primos foram partindo para os quatro cantos do mundo e, para ser honesto, também já me apetecia viajar e vir infernizar a vida desta gente, do lado de cá do Atlântico. E consegui! A irmã do A. foi este ano de férias para o México. Levou a encomenda feita e trouxe-me finalmente para cá. Agora é que vão ser elas….

Ah Ah Ah acreditem que yo voy a hacer de este lugar un auténtico INFIERNO!!!!

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Romeu e Julieta


Encalhado no lodo da maré vaza, o pequeno barco vermelho, cor da paixão, alimenta-se da esperança e da certeza do regresso das águas que o farão de novo dançar e fluir ria fora. Assim são as nossas vidas. Assim, os nossos amores.

Fim de Verão


O tempo está prestes a virar a página. O Verão sai oficialmente de cena às 04h09m de 23 de Setembro. Acho que para já, só mesmo oficialmente.
É certo que, não tarda, vamos ter saudades, mas novas cores se avizinham para nos encantar os dias.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Círculo e o Crédito

Oh não!!!
Já não bastavam as cartas do banco oferecendo créditos para realizar todos os meus sonhos e para atulhar a caixa de correio e de seguida o ecoponto azul. Agora até o Círculo de Leitores me manda "viver todas as experiências sem ter de fazer contas".
Chega uma pessoa a casa e vai abrir a cartita do CL pensando que vinham por aí novidades literárias, mas não. Toma lá uma linha de crédito que é para ires a correr fazer "aquela viajem que há muito ambiciona, remodelar a casa ou comprar um novo computador".
Onde é que já se viu isto! Até já estou com receio de receber a próxima correspondência.... sei lá.... da Deco Proteste, a propor-me um qualquer endividamentozito....

La foule



Porque me apeteceu pôr o "gira-discos" a tocar...

domingo, 19 de setembro de 2010

O livro mais caro do mundo


Imagem em BBC News

Li aqui que o livro mais caro do mundo vai a leilão em Dezembro. A imagem da notícia, que reproduzo neste post, é linda. É um livro de ilustrações sobre aves. Desta história só não gostei da parte que explica que o ilustrador, James Audubons, matava as aves para poder depois desenhá-las. E claro, também não gostei da parte que se refere ao preço....

Passeio de Domingo (16)



Perto de casa, em campos com cheiro a tomilho.






sábado, 18 de setembro de 2010

Figos


Hoje foi mais um daqueles dias de convívio familiar em que juntamos à mesa tios e primos para uma almoçarada com sabor a fim de Verão. Daquelas que começam às 11 da manhã com várias donas à volta do fogão, seus maridos a tratar do churrasco, os filhos já crescidos a compor mesas e a brincar aos barmen fazendo mojitos... e só acabam à noitinha. Do muito que se comeu... muito mesmo... tenho que mostrar aqui os fantásticos figos trazidos pela prima S.
Digo fantásticos porque para além de excelentes parece que provêm de uma qualquer figueira "mágica"... é que a prima assegura que aquela figueira dá figos quase todo o ano.... Já tem carga para amadurecer novamente e ela calcula que ainda vai comer figos destes até Novembro...

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

As amêndoas


Debaixo do alpendre despejávamos as sacas de amêndoas e, em volta desse monte de amêndoas, acomodávamo-nos em baixas cadeiras de atabua. Cada uma de nós ia tirando mãos cheias de amêndoas para o colo, protegido por um avental ou alguma saia velha. Com uma faca pequena descascávamos os frutos atirando as cascas para um monte e as amêndoas para largas alcofas de empreita, de onde seriam de novo transferidas para as sacas, prontas para a venda. Algumas amêndoas, já estavam demasiado secas e com a casca muito agarrada. Essas haviam de se pôr de molho, em baldes de água, para lhes amolecer a casca e concluir então a tarefa.

Éramos mais mulheres que homens: as tias, as primas, as mães, as filhas, as avós. Velhas, novas, crianças até. Às vezes os tios. E as conversas cruzavam-se no ar com as trajectórias das amêndoas atiradas para as alcofas. As ajudadas na descasca aconteciam ora no alpendre da casa da tia ora na cabana da casa da mãe. Ficávamos com as mãos sujas de pó e pegajosas da resina que sobrava das cascas.



Há quantos anos, já, que não descasco amêndoas…?


terça-feira, 14 de setembro de 2010

A vida secreta dos objectos - os bailarinos de cerâmica


Ainda não foi desta.
Mais uma vez a senhora das limpezas esfregou-nos suavemente com o pano macio e colocou-nos de forma segura em cima do móvel. Como sempre ficámos a uma razoável distância da quina da estante e nem que soprasse a maior corrente de ar pela porta da varanda entreaberta isso seria suficiente para nos arrastar até ao abismo e facilitar uma queda tão acidental como ansiada.
Ansiada sim! Este desejo suicida de transformação em cacos está a tornar-se numa verdadeira obsessão. É que não dá mais para aguentar esta vida.
Ma onde é que o malvado do ceramista tinha a cabeça quando decidiu criar-nos nesta dolorosa posição??? Conseguem, por acaso, imaginar o que é passar vinte anos, já, de uma vida estática, fazendo a espargata? Ainda por cima tocando com a testa nos joelhos?
Isto parece muito fácil, não é? Bailarinos … e tal. É só elasticidade. Pois é. Mas dói… oh se dói! Então não nos podia ter torneado de pé, fazendo um arabesco… sei lá… Ao menos sempre olhávamos à nossa volta. Que inveja chegamos a ter daquelas bailarinas de plástico, montadas num mecanismo musical, que rodopiam suavemente quando lhe abrem a tampa do guarda-jóias! Essas sim têm uma vida boa. Ora dançam, ora descansam. Mas nós, não. Estamos condenados a manter esta posição de esforço até à eternidade… ou, se “Deus quiser” e o Diabo andar por perto, até ao próximo dia de limpezas…



sábado, 11 de setembro de 2010

Quando a modernidade se encontra com a antiguidade

O prometido é devido... por isso respondendo aos pedidos da Vera, a Loira e da mdsol, aqui fica a minha (embora fraca) reportagem fotográfica da exposição Dez Monumentais Esculturas Britânicas que durante um ano, até 10 de Setembro de 2011, pode ser visitada na estação arqueológica do Cerro da Villa, em Vilamoura.

É a primeira vez que estas obras monumentais, pertencentes à Colecção Berardo, são expostas ao público. São esculturas britânicas dos séc. XX e XXI de grandes nomes da História de Arte Moderna e Contemporânea, que podem ser vistas ladeando as ruínas de uma casa nobre, de balneários públicos, de tanques de salga de peixe e de uma zona portuária que testemunham a presença romana no Algarve.

Não percam...



[Zadok Ben-David (1949- ), Looking Back, 2005]


[Henry Moore (1898-1986), Reclining Figure: Arched leg, 4/6, 1969-70] - Tirada "pelas costas", por assim dizer...


[Tony Cragg (1949- ), Line of Thought, 2006]


[William Furlong (1944- ), Walls of Sound, 1998]



[Peter Burke (1944- ), Register, 2003]



[Danny Lane [1955- ), Stairway, 2005]


[Allen Jones (1937- ), Temple, Ed. 1/3, 1997]


[Anthony Caro (1924- ), Fleet, 1971]


[Lynn Chadwick (1914-2003), Ace of Diamonds III, 2003]


[Richard Deacon (1949- ), Breed, 1989]

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Querida sogra...

Ainda agora nem terminou o Verão e já a minha colega S. anda preocupada a pensar no presente que vai oferecer à sogra no próximo Natal. Esta tarde teve uma ideia luminosa e partilhou-a logo com entusiasmo:
- Já sei!.... Vou-lhe oferecer uma esfregona!
Perante os olhares interrogativos dos colegas de serviço apressou-se a explicar:
-Pois se ela no Natal passado me ofereceu uma forra para a tábua de passar a ferro...


Está visto: sogra e nora amam-se!

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Os objectos e os seus segredos


Ora eu que tenho uma pancadinha pela "vida secreta" dos objectos, descobri hoje um sítio mesmo a calhar. Chama-se Bent Objects e pertence a Terry Border, o artista que os cria a partir de objectos e alimentos do dia a dia.


Fantástico.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Esculturas monumentais

São GRANDES mesmo... já as avistei da estrada que conduz à praia. Agora quero vê-las de perto. É já na próxima sexta-feira.

Baratas

Bem... lá terei de rever as minhas convicções e encarar estes bichinhos com outra disposição...

sábado, 4 de setembro de 2010

Azul mar

Vá... podem falar-me à vontade das praias paradisíacas das Caraíbas, do Pacífico, do Índico... pfff...


[Costa algarvia. Setembro 2010]

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Cacela...ainda


Rodas de quem lá mora... (?)



Rodas de quem lá vai passear... (?)



Os cataventos de Cacela



Fui a Cacela Velha.
Pena que fui em dia de céu nublado o que não favoreceu o trabalho da máquina fotográfica. O certo é que Cacela é um verdadeiro deslumbramento, uma pequena pérola na costa algarvia. Debruçada sobre a Ria Formosa, mostra-nos uma paisagem verdadeiramente inspiradora. Por estes dias (aliás desde Julho) o pequeno núcleo histórico parece ainda mais uma aldeia encantada. Exibe uma colecção de cataventos resultantes de um concurso que foi promovido pela autarquia local.
Lindo...



O tempo das cigarras


Pergunto-me o que fará esta cigarra, imóvel nos degraus do meu pátio, enquanto no ar se ouve o som ensurdecedor do canto das suas irmãs.
Será que está a tentar estabelecer conversa com as formigas que se apressam no carreiro, ali mesmo ao lado? Se fizer desde já amizade com algumas delas, talvez, chegado o Inverno, lhe valha uma resposta diferente daquela que conhecemos da fábula de La Fontaine...

Tendo a cigarra em cantigas

Folgado todo o Verão

Achou-se em penúria extrema

Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha

Que trincasse, a tagarela

Foi valer-se da formiga

Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse,

Pois tinha riqueza e brio,

Algum grão com que manter-se

Té voltar o aceso Estio.

“Amiga, - diz a cigarra –

Prometo, à fé de animal,

Pagar-vos antes de Agosto

Os juros e o principal.”

A formiga nunca empresta,

Nunca dá, por isso junta.

“No verão em que lidavas?”

À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: “Eu cantava

Noite e dia, a toda a hora.

- Oh, bravo! – torna a formiga;

Cantavas? Pois dança agora!”

[Versão adaptada por Bocage]

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Setembro


"Mês de Setembro, pra lá vai com fome, pra cá vem comendo"
Explica José Ruivinho Brazão, autor do livro "Os provérbios estão vivos no Algarve", que o que este quer dizer é que no mês de Setembro não faltavam recursos, sobretudo pela abundância que havia de figos, nos campos algarvios. Pela mesma razão se diz que no mês de Setembro está a mesa de Deus posta.