terça-feira, 19 de julho de 2016

Chamada perdida

Somos quatro e almoçamos na mesa da esplanada do restaurante para aproveitar a fraca brisa que passa de vez em quando. Começa a ouvir-se uma música, como se saísse de um altifalante. Curiosa, interrompo a nossa conversa e pergunto repetidamente, mas de onde vem esta música? Mas de onde vem esta música? Todas percebemos em simultâneo que a música, afinal, vem da mesa ao lado onde uma mulher toma café na companhia de um computador portátil e de um telemóvel. A música cessa com a chamada perdida que ela não atendeu. Uma de nós tem a língua destravada e resmunga, em tom de se ouvir, que dispensa toques de telemóvel em altos berros enquanto almoça. Eu calo-me e mastigo como se não fosse nada comigo. Outra de nós faz o mesmo enquanto uma terceira fala de um tema relacionado com a manhã de trabalho no escritório.

A mulher do telemóvel e do computador portátil torce-se na cadeira e vira-se para trás de modo a encarar o nosso grupo. Tem unhas longas, cor-de-rosa choque e afiadas como garras. O seu olhar cruza o meu e fuzila-me. Cobardemente, finjo que na minha mesa ninguém deu por ela. Levanta-se, por fim, e afasta-se de andar dolente na sua saia de tigresa. Entretanto, o telemóvel não voltou a tocar.

12 comentários:

  1. Lindo blog, convido a conhecer e seguir o meu bjus.

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  2. Unhas rosa choque afiadas e saia tigresa...
    ...só esses dois pormenores dizem tanto...

    :)

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  3. Ainda não nos convencemos de que temos de respeitar os outros, mesmo que seja uma esplanada. Já estivemos pior...

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  4. "Entretanto, o telemóvel não voltou a tocar."...

    Então, a mulher solitária- tendo por companhia o PC e o telemóvel - esqueceu o dito cujo, na mesa?

    Saia tigresa e unhas rosa-choque, definem a mulher como o quê? Não percebi! :(

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  5. É sempre bonito ficar no caminho da ira. :)

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  6. Elisabete Lira,
    Obrigada. Irei visitar. :)

    C.N. Gil,
    Aqui, as interpretações só dependem dos intérpretes.:)

    MZ,
    Respeito mútuo.)

    Janita,
    O “entretanto”, foi até a mulher se ir embora.
    O post limita-se a descrever sem qualquer intenção de definir :)

    Carla,
    Vale que ela deu meia volta e levou a ira com ela. :)

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  7. Não tenho dúvidas!
    E por vezes é fácil cair em estereótipos, é verdade...

    :)

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  8. Também já levei com cenas dessas......e, conversas intermináveis em voz altíssima....:(

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  9. Pelo menos.. o telemóvel não voltou a tocar... e deu para terminar a refeição com mais sossego...
    Bjs! Continuação de uma boa semana!
    Ana

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  10. Meu Velho Baú,
    Por vezes não nos damos conta que estamos a “invadir” o espaço de outros. :)

    Ana Freire,
    Se calhar colocou-o em silêncio… :)

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  11. Eu também dispenso, mas confesso que pior ainda foi o que me aconteceu no início do mês na praia Verde, onde estive a passar uns dias: jantar no hotel com cães ao lado ( ainda por cima barulhentos) não lembra ao careca!

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  12. Gosto sempre destes seus contos compactos, em que em dois parágrafos surpreende um instantâneo de uma personalidade ou de um meio social.

    Muito embora o telemóvel seja por definição um objecto inconveniente, que toca sempre quando não deve, quando estamos a pagar a conta do supermercado, quando estamos na sanita a desenrolar o papel higiénico e a lista de momentos inoportunos nunca acaba, há gente que lhe define um toque de tal ordem, que parece revelar a sua forma de estar no mundo ou melhor dizendo de incomodar no mundo.

    Tive um colega, cujo toque de telemóvel era um bebé num choro convulsivo e não contente com isso, deixava-o tocar em reuniões de serviço, despachos com a direcção e por aí fora.

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