quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Mil andorinhas

Mil andorinhas juntaram-se esta manhã na antena de televisão da casa da vizinha e no cabo de eletricidade que ladeia o céu da minha rua.

Mil. Foi uma conta fácil de fazer, assim num relance, nos escassos segundos em que olhei para a direita e depois para a esquerda antes de sair do portão e me fazer à estrada. Eram mil andorinhas numa agitação de asas ao primeiro sol da manhã. Não me pude deter na observação do seu ajuntamento porque a vida me chamava para o lado oposto ao evento. Mas levei comigo, pela manhã fora, a carga leve desta especial melancolia de fim de agosto e uma alegria triste, própria das festas de despedida. Sabia bem que no meu regresso a casa já não veria as andorinhas.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Um post para esquecer

Uma viagem inteirinha até Faro e outra viagem inteirinha de Faro até casa com a dúvida instalada. Uma dúvida que oscila entre a quase certeza e a inquietante incerteza. É incrível a diversidade de coisas que me passam pela cabeça quando levo as mãos no volante. E como coisa, puxa coisa, começo por pensar que tenho de comprar uma prenda para a filha da minha prima que brevemente celebra aniversário. E o caso é que essa minha prima me ofereceu, não há muito tempo, uma blusa. E acontece que há dois dias atrás eu coloquei essa blusa na máquina para lavar. E depois saí de casa, a passeio. E agora, com as mãos no volante, a caminho e Faro, já não sei se pus mesmo a máquina a lavar. Só sei que nunca mais me lembrei da roupa, nem da máquina. E só imagino a minha blusa, no meio de outras blusas, toalhas de rosto, talvez uma ou outra calça, encerrada, molhada, amarfanhada no tambor da máquina, certamente já com odor pouco recomendável. E sigo viagem nesta inquietação. Faço o que tenho a fazer no destino tomado. E regresso, mãos no volante, cabeça às voltas, ansiosa por chegar a casa para programar nova lavagem, não dispensando aquele amaciador que cheira tão bem a angélicas e flor de baunilha. E vou-me recriminando. Que despistada. Que descuidada. Que desmemoriada.  Mas talvez se tenha dado o caso de, há dois dias, eu não ter ligado a máquina de lavar. Mas, não. Acho que liguei mesmo. A minha memória está mais nublada do que aquele canto de céu.  Ai, só eu. Já em casa, confiro a máquina de lavar e lá está a minha blusa, em seco, com pouca companhia ainda, no tambor da máquina, que se mantém de óculo aberto enquanto espera por mais abastecimento.  Não sei se fico aliviada pela roupa, se fico preocupada pela minha pobre memória. E não sei o que é pior, se este paupérrimo estado em que se encontra, se a minha crescente falta de confiança nela.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Consciência

Vejo-as, ainda de longe, no passeio do topo da rua pela qual caminho. Observam, como que a medo, o corpo que repousa num banco público. Trocam impressões, inquietas, seguram o queixo com uma mão, apoiam a outra na anca, dão um passo em frente, inclinam o tronco para aproximar os olhos do objeto da sua curiosidade, recuam um passo e voltam ao seu posto inicial de observação. 

Um homem acerca-se das duas mulheres. Imagino-lhes os questionamentos sobre quem se mantém ali estendido, imóvel, corpo morto sobre o banco, debaixo de uma árvore de escassa folhagem. Num repente o homem chega-se ao corpo inanimado e, como aferindo-lhe a pulsação, pousa os dedos sobre o pescoço da criatura que, apenas adormecida, se senta de sobressalto.

Gesticulam e explicam-se os três observadores dando conta das suas inquietações à mulher já acordada e a refazer-se do susto. A conversa está agora ao alcance dos meus ouvidos. Aconselham-na a colocar a cabeça à sombra, que se deite, sim, mas que se proteja do sol.

Enquanto a mulher ensonada se mantém muito direita, sentada imóvel no banco de jardim, as duas primeiras vão à sua vida, dizendo uma para a outra, que não se podia ir embora sem fazer nada. Não podia. É que não iria ficar de bem com a sua consciência.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

A gravata

A quatro mesas de intervalo, a mulher pousa o tabuleiro e senta-se virada de frente para mim. Conheço-a. Conheço-a. Conheço-a. Mas de onde? Mas de onde? Mas de onde? Na minha cabeça, a dúvida anda em círculos velozes a ponto de quase me entontecer. Prossigo a minha refeição em esforço mental até que o colega da mulher chega por sua vez à mesa e me salva. Não é propriamente ele que me salva. É a gravata verde que usa e que, lá do pescoço dele, me grita que a mulher é a que atende ao balcão da seguradora.


domingo, 27 de agosto de 2017

Passeio de domingo (372)


Perdoem-me a monotonia deste passeio, mas hoje deu-me para me dedicar não a flores com espinhos, mas aos espinhos que dão flor.









T(r)emor

O solo estremecia sob a minha toalha de praia. A cada bum, bum, bum correspondia um passo de corrida do rapaz que vinha da água e se dirigia para o grupo familiar, mesmo na minha frente. Sentados em fila horizontal, pai, mãe, irmão já despachavam as suas bolas de Berlim. O rapaz pegou também numa e comeu-a de pé, costas viradas para o mar. Estava na minha hora e apressei-me a sair do areal antes que o rapaz voltasse a correr. Foi ontem. Entretanto, consultados os sites de notícias, verifico que nada de anormal foi registado na zona. A praia aguentou firme. 

domingo, 20 de agosto de 2017

Passeio de domingo (371)


10h00 - 12h00, em manhã de "Oh (para não dizer Ah) o Algarve em agosto", na praia da Falésia. Porque há caminhos quase secretos.









sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Receita


Receita para fazer o azul

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho 
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo do metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão bem Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice

In Meditação sobre ruínas, 1995

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Estio

Nestes tempos de abundância,
voarei sobre palavras tuas.
Planarei, lenta, absorvendo devagar o aroma
que delas se evola.
E mergulharei, como ave marinha que, veloz, fende a água
em busca de alimento.
E hei de levar histórias tuas presas na minha boca,
para que sejam provisão
nos invernos que sei, tarde ou cedo,
se abaterão sobre nossas vidas.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

La javanaise

Despertar

Os estorninhos não vieram hoje acordar-me. Habituaram-me mal durante dois dias seguidos, postos em bando nos mais altos ramos da alfarrobeira aqui atrás. Cantaram-me melodias de sonhar, fizeram-me correr à varanda espreitar de onde vinha tão harmonioso coral, despertaram em mim a leveza dos dias.  Não vieram hoje e acredito que não virão mais. Amanhã terei de contentar-me com os piares dos pardais residentes.


domingo, 13 de agosto de 2017

Passeio de domingo (370)


Não digam a ninguém, mas foi o sábado que emprestou este passeio de fim de tarde ao domingo. 








quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Beijos


São como beijos
De seda e de ouro
Soltos ao vento

Eternidade

Quando o meu tempo é simultâneo com o teu tempo, quando o meu pensamento se entrelaça no teu pensamento, quando a minha voz se modula com a tua voz, quando a minha luz se funde com a tua luz, diz-me, isso é a eternidade?

domingo, 6 de agosto de 2017

Passeio de domingo (369)



Na horta, apenas. 









Alcagoitas

Saí há pouco de Tebas e, tendo navegado por algumas páginas mais, deixei o Mário no navio, pousei-o com cuidado na cadeira que me servia de apoio aos pés e mergulhei nas águas onde, por duas vezes já, uma andorinha veio beber. Depois, enrolada na toalha, procurei alimento que condissesse com o meu estado de indígena em gozo de folga num domingo de agosto. Assim, aqui estou, "aquintalada", em terra firme, ouvindo o tutuar das rolas turcas e o tzzzagarelar das cigarras, enquanto me dessedento sorvendo uma água amarga com bolhinhas e triturando, imparável, uma mão cheia de amendoins* torrados, ao natural.

*ou, melhor dizendo, alcagoitas.

sábado, 5 de agosto de 2017

Sonho




És como lua
em noite de agosto
tal sonho de luz

Companhias

Dependerá do gosto pessoal, da ocasião e até do ponto de vista de cada um, por isso não digo que são boas ou que são más. Mas há companhias que, com toda a certeza, nos apanham desprevenidos e nos deixam sem saber muito bem o que pensar ou dizer. Assim a estranheza que, acredito, sentiram aqueles seis ou sete livros, amontoados sobre o balcão da livraria, à espera de serem arrumados nas prateleiras das respetivas letras e categorias. Como que ensanduichados, ali estavam dois ou três Tolstói, um Pedro Chagas Freitas, e uns quantos Dostoiévski.

Longevidade

Eu sei que, se almejo a longevidade, não posso descurar hábitos de uma vida saudável. E, quem sabe, também deva pensar seriamente em adotar estes. 

terça-feira, 1 de agosto de 2017